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Artigo – Interpretando o art. 1.597, incisos III a V, do CCB, à luz do sistema jurídico positivo

Por Mário Luiz Delgado

 

Embora as técnicas de reprodução assistida sejam amplamente divulgadas e utilizadas, inexiste regulamentação legal sobre o tema e o Código Civil as menciona apenas no que atine às presunções de paternidade, na forma do art. 1.597, quando os filhos decorrem da utilização de um desses expedientes.

 

Retomo hoje um tema que já tratei em escritos anteriores, qual seja, a questão da prévia autorização conjugal para a reprodução assistida post mortem. Venho insistindo, faz tempo, na necessidade de estabelecermos o adequado enquadramento das relações afetivas nas novas categorias jurídicas do Direito de Família.

 

Ao mesmo tempo em que vivenciamos, nessa seara, uma exponencial evolução das molduras normativas, com o reconhecimento do afeto como valor jurídico e da afetividade como princípio, ainda estamos “engatinhando” no que tange à regulação legislativa dessas categorias em vias de construção, cujo delineamento prático encontra-se restrito a normas deontológicas, sem força de lei, não obstante hauridas a partir de uma jurisprudência de vanguarda, mas que se apresentam permeadas de lacunas.

 

É o que ocorre, atualmente, com as técnicas ou métodos de reprodução humana medicamente assistida, que constituem meios de acesso à parentalidade natural, assegurando o exercício dos direitos fundamentais atinentes ao livre planejamento familiar e aos direitos reprodutivos.  

 

Embora as técnicas de reprodução assistida sejam amplamente divulgadas e utilizadas, inexiste regulamentação legal sobre o tema e o Código Civil as menciona apenas no que atine às presunções de paternidade, na forma do art. 1.597, quando os filhos decorrem da utilização de um desses expedientes.

 

O aludido dispositivo criou específicas presunções legais de paternidade aplicáveis às situações de reprodução medicamente assistida (incisos III, IV e V). A primeira delas decorre da fecundação artificial homóloga1, mesmo que falecido o marido, mediante a utilização do sêmen daquele, previamente armazenado para fecundação futura. A segunda, quando se tratar de embriões excedentários que, a qualquer tempo, poderão ser implantados e gerados pela mãe biológica, detentora, a teor da lei, da disponibilidade sobre eles. A terceira presunção tem lugar diante dos filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, que é realizada com sêmen de terceiro (ou dador), condicionada à prévia autorização do marido.

 

Como se vê, não há que se falar em limitação temporal ao uso das técnicas, uma vez que a utilização do material genético ou dos embriões poderá ocorrer post mortem, ou seja, após o falecimento do marido/esposa, companheiro(a) ou doador(a), a fim de que o projeto de vida se concretize. Ocorre, contudo, que a fecundação ou implantação de embriões post mortem enseja discussões no ordenamento jurídico, em especial quanto à necessidade de autorização específica do falecido genitor.

 

A redação do art. 1.597 faz entender que, para a inseminação homóloga post mortem, bem como para o uso de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga, a autorização prévia do cônjuge ou companheiro seria dispensável. Isso porque o legislador só fez referência à autorização no inciso V daquele artigo, que trata da reprodução assistida heteróloga, ou seja, com o uso de material genético de terceiro2.

 

No entanto, a exegese literal, conquanto defensável sob a ótica da interpretação jurídica, especialmente no que tange à implantação de embriões criopreservados, poderia levar ao extremo de se permitir, com a mesma ratio, o uso do material fecundante do próprio falecido sem a sua expressa autorização dada em vida, o que representaria, sem dúvida, violação a direito da personalidade. Por isso, a posição majoritária na doutrina é a de que os incisos III, IV e V do art. 1.597 devem ser interpretados de forma sistêmica e harmônica, de modo a que, em toda situação de reprodução assistida post mortem, homóloga, heteróloga, ainda que se trate de mera implantação de embriões excedentários, não se prescinda da autorização expressa, fornecida em vida, pelo cônjuge ou companheiro.

 

Portanto, em qualquer hipótese de reprodução assistida post mortem, a presunção da paternidade dos filhos havidos em decorrência do uso dessa técnica exige a prévia autorização do falecido. A dicção legal é expressa, quando estabelece que esses filhos se presumem concebidos na constância do casamento (ou da união estável), se o procedimento foi autorizado pelo marido (ou companheiro) enquanto vivo. O problema que remanesce centra-se, agora, na forma dessa autorização, eis que o Código Civil se limitou a fixar o momento em que a autorização deve ser prestada (prévia- antecedente ao início da intervenção médica), mas não a forma de que deve revestir-se (se escrita ou verbal, por instrumento público ou particular, por negócio jurídico inter vivos ou mortis causa).

 

Seria válida, dessa forma, a autorização verbal ou tácita, para a realização da inseminação homóloga ou heteróloga post mortem? E para transferência embrionária?  Do ponto de vista da legalidade estrita, não há dúvida que sim, não obstante normas administrativas ou deontológicas possam sinalizar que não.

 

Assim, ostenta ilegalidade flagrante qualquer pretensão de se impor forma especial ou solene para a autorização do cônjuge/companheiro, com base em normativas infralegais editadas quer seja pelo CNJ ou pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), já que o legislador brasileiro, no art. 1.597 do Código Civil, não especificou a forma pela qual deveria ser emitida a autorização do cônjuge ou companheiro para fins de presunção de paternidade na reprodução assistida heteróloga post mortem.

 

A validade de qualquer declaração de vontade só depende de forma especial quando a lei (e somente a lei em sentido estrito) expressamente a exigir. Aos atos jurídicos em geral, a regra é a da liberalidade das formas3.

 

Daí, como não há forma prescrita em lei no que diz respeito à autorização, entende-se que a sua forma é livre, não sendo restrita à forma escrita, muito menos a forma especial (instrumento público ou particular com firma reconhecida) como previsto, por exemplo, no Provimento 63/17 do CNJ, para fins de averbação da paternidade e emissão da respectiva certidão pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais.

 

De qualquer forma, restrições, como aquelas postas no Provimento 63/17, a par de sua evidente ilegalidade, não obstam a transferência embrionária, nem o estabelecimento da presunção de paternidade, a partir da prévia autorização verbal ou implícita da pessoa falecida, podendo, no máximo, obstar que o registro de nascimento e a emissão da respectiva certidão se façam administrativamente, independentemente de ordem judicial.

 

Notas

 

1 Aludimos a reprodução assistida homóloga quando utilizados gametas dos próprios cônjuges ou companheiros, e reprodução assistida heteróloga quando utilizado material genético de terceira pessoa ou de doador anônimo.

 

2 Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: (…) V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

 

3 APELAÇÃO CÍVEL. Ação de cobrança. Sentença de procedência. Contrato verbal de compra e venda de refeições. Direito da requerente comprovado nos autos. Ônus da parte requerida. Cálculos apresentados pela requerente e não impugnados pela parte contrária. Recurso desprovido 1. Admite-se a liberdade de forma na celebração de contratos, sendo exigido formato especial apenas nos casos previstos em Lei, à luz do art. 107 do código civil. 2. Dever da requerida de demonstrar fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito da requerente, já que o contrato verbal celebrado entre as partes restou comprovado. 3. As notas fiscais e os boletos bancários, embora não possuam força executiva, em conjunto com as demais provas apresentadas, são capazes de demonstrar a relação jurídica contratual entre as partes e o inadimplemento por parte da requerida. (TJPR; ApCiv 1211876-6; Maringá; Décima Segunda Câmara Cível; Relª Desª Denise Kruger Pereira; Julg. 3/6/15; DJPR 23/6/15; Pág. 180)

 

*Mário Luiz Delgado é advogado fundador do escritório MLD – Mário Luiz Delgado Sociedade de Advogados. Doutor em Direito Civil pela USP e mestre em Direito Civil Comparado. É presidente da Comissão de Direito de Família e das Sucessões do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

 

Fonte: Migalhas