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Clipping – Migalhas – Primeira trans a realizar cirurgia de mudança de sexo no Brasil foi chamada de “eunuco estilizado” na Justiça

Em 1971, o cirurgião plástico Roberto Farina realizou, de forma pioneira, uma cirurgia de redesignação sexual. Considerada a primeira no Brasil, a cirurgia que transformou Waldir em Waldirene gerou um processo criminal.
Depois de realizar algumas cirurgias de mudança de sexo, o médico foi alvo de investigações. Em proporções inimagináveis para os dias de hoje, o documento que acusava o médico foi escrito com termos ríspidos ao se referir à transexualidade, usando a expressão “eunuco estilizado”. 

Investigação
No dia 15 de novembro de 1975, uma reportagem publicada pelo Estado de S. Paulo contava a história de pioneirismo de Farina ao realizar cirurgias de redesignação sexual. Segundo a matéria, cinquenta pessoas aguardavam para serem operadas por ele:
“Cinquenta brasileiros, inclusive dois indígenas, estão se preparando para mudar de sexo, por meio de uma cirurgia, já executada com êxito em outros nove pacientes. O autor das operações, cirurgião plástico Roberto Farina, apresentou ontem, no encerramento do XV Congresso Brasileiro de Urologia um filme de sua primeira cirurgia de reversão sexual, realizada em 1971.” (Estado de S. Paulo, 1975)
A publicidade das cirurgias motivou uma solicitação, redigida pelo procurador da Justiça Luiz de Mello Kujawski. Ele requereu ao procurador-Geral da Justiça a instauração de um Inquérito Policial contra Roberto Farina.
No documento, Kujawski afirmou que o médico estaria infringindo o segundo parágrafo do art. 129 do Código Penal sobre lesões corporais. Kujawski acreditava ainda que os indivíduos que passavam pela cirurgia não eram transformados em mulheres, “e sim em verdadeiros monstros, através de uma anômala conformação artificial”.
Médico denunciado
A denúncia contra o médico foi apresentada em 1976, quando o promotor público Messias Piva acusou o cirurgião de lesões corporais graves, devido à realização da cirurgia de redesignação sexual de Waldirene, realizada em 1971. Foi então o início de um extenso e complexo processo judicial.  
Veja a íntegra da denúncia.
 
Waldirene havia procurado a equipe médica de um hospital em São Paulo porque sentia que o corpo em que estava não a pertencia. Em conjunto, os médicos concluíram que a cirurgia de redesignação seria a melhor alternativa para a solução do problema. Com a cirurgia, seu corpo iria, finalmente, se alinhar à sua personalidade. 
De acordo com os documentos do processo, quatro anos depois de realizada a cirurgia de redesignação sexual, Waldirene procurou o TJ/SP para modificar o nome no registro civil, uma vez que a identidade antiga não era mais adequada. O interesse em modificar o registro reforçou as investigações que originaram a abertura do processo criminal no qual Roberto Farina se tornou réu.
No termo de declarações do processo consta que, após a mudança, a paciente sentia-se plenamente mulher e que lutava para ser reconhecida como tal, não apenas nos aspectos sociais, como também pela Justiça brasileira: 
“Motivo porque tendo requerido na instância civil da comarca da capital o seu registro como do sexo feminino, teve primeiramente ganho de causa, sentença essa reformada no Tribunal Paulista, estando no momento com recurso no Supremo Tribunal Federal; que, o declarante procura de todas as formas possíveis que lhe seja reconhecido o direito de ser mulher.” (Termo de Declarações) 
Em 1978, o juiz Adalberto Spagnuolo, da 17ª vara Criminal da Capital, condenou Roberto Farina a cumprir dois anos de reclusão pelo crime de lesão corporal grave.
Para o magistrado, a cirurgia “apenas serviu para mutilar um individuo do sexo masculino, transformou um doente mental em eunuco, satisfazendo seu desejo mórbio de castração. Isso tudo sem curar o mal psíquico, apenas ridicularizando-o de vez, sem qualquer outra possibilidade de cura”.  
 
“Fiquei livre para sempre…”
Após a condenação, outros advogados assumiram o caso para ingressar com apelação. Aos causídicos, Waldirene escreveu uma carta pedindo para não pouparem esforços para inocentrar o médico. Segundo ela, Farina salvou sua vida:

  1. Na apelação, o advogado do réu, Octávio Reis, sustentou que o crime descrito pela acusação não existia “porque não houve lesão corporal, isto é, não houve inutilização de órgão ou função, mas tão somente adaptação de órgãos e criação de função até então inexistente, além do que a ação atribuída ao acusado serviu para preservar a saúde mental da pseudo-vítima. Não houve, e nem se provou, a ocorrência do dolo específico ao crime de lesões corporais”.

Ao analisar o pedido, a 5ª câmara do Tribunal de Alçada Criminal da Capital decidiu, por dois votos a um, acolher os argumentos da defesa e absolver o médico.
O acórdão relata que Waldirene era imensamente agradecida pela cirurgia. Visto isso, “teria o acusado praticado o delito que lhe foi imputado?”. Para os juízes, ficou evidente que não, uma vez que “não age dolosamente o médico que através de uma cirurgia procura curar o paciente”.
Segundo a argumentação, a paciente teria passado por uma junta médica qualificada de cirurgiões, psicólogos e psiquiatras, os quais possuíam reconhecimento internacional e brilhantismo em universidades brasileiras: “houve serena e firme atuação, dentro do mais elevado estalão ético, científico e técnico”. Os juízes acreditaram que:
“Por todo o exposto, é bem de ver que o acusado não se houve com dolo. Ele apenas seguiu a terapêutica indicada pelo consenso unânime de uma equipe de especialistas […] não cabendo indagar se esse grupo de especialistas errou no diagnóstico ou se a cirurgia era realmente indicada para a hipótese. Tudo isso é irrelevante para a caracterização do delito em exame. O que importa, o que interessa para o deslinde da questão, é que o Dr. Roberto Farina seguiu a orientação de uma junta de especialistas.”
Veja o acórdão.
(Direito de) ser mulher
Apenas 26 anos depois da cirurgia, em 1997, o Conselho Federal de Medicina autorizou a realização de cirurgias de redesignação sexual no Brasil ao publicar a resolução 1.482, que defendia o caráter terapêutico da intervenção. A partir de 2008, o tratamento foidisponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), gratuitamente. 
O desejo de mudança no registro civil de Waldirene é, desde 2018, um direito garantido. Aojulgar a ADIn 4.275, o plenário do STF decidiu ser possível a alteração de registro civil por transsexuais mesmo sem a realização de redesignação sexual, além disso, a Corte decidiu também que a mudança pode ser solicitada por via administrativa.