O espaço em branco é duplo nos documentos de João Vítor Pereira, de 14 anos. Nem nome do pai nem do avô materno. A mãe do garoto, Kelly Cristina Pereira, 27, também não tem a paternidade reconhecida. Duas gerações em busca desse direito, tema de reportagem de ontem do Correio, que trouxe levantamento inédito sobre o número de Certidões de Nascimento com a filiação incompleta em Brasília e em São Paulo: um a cada 20 registros.
Mãe e filho entraram com um procedimento de investigação de paternidade no Ministério Público (MP) do Distrito Federal, que incentiva o reconhecimento de paternidade tardia por meio do programa Pai Legal. Ainda adolescente, Kelly engravidou. O namorado estava viajando quando ela deu a notícia pelo telefone. “Ele disse que voltaria em 4 de outubro. Só esqueceu de falar de qual ano”, brinca a mulher.
Quatorze anos se passaram. A vontade de João Vítor de ter um pai nunca foi embora. Em maior ou menor intensidade, dependendo do momento, o desejo é explicado pelo adolescente em poucas palavras: “É chato você não saber quem é seu pai”. No caso de Kelly, ela conhece e até mantém alguma convivência com o homem que sempre adiou o reconhecimento formal da condição de pai. “Já tem 27 anos que eu ouço esse ‘vou te registrar’ e nada. Então, quando fui fazer o pedido do João Vítor, perguntei se podia fazer para mim também.”
O significado do registro para gente crescida varia, explica Ana Liési Thurler, doutora em Sociologia e autora do livro Em Nome da Mãe. O não reconhecimento paterno no Brasil. “Alguns desejam somente conhecer o pai, vê-lo. Outros querem uma aproximação, amor, serem socialmente assumidos e acolhidos como filho em igualdade de condições com os irmãos”, explica. “No imaginário da quase a totalidade das pessoas para as quais o pai deu as costas, paternidade evoca proteção, acolhimento, porto seguro, cuidado. As pesquisas que realizei apontaram para esta direção: não importa que seja tarde.”
Ana cita a escritora Barbara Cartland para exemplificar a intensidade do sentimento de falta. “Ela nos lembra que quando roubaram a Monalisa do Louvre, em Paris, em 1911, e o quadro ficou ausente de lá durante dois anos, houve mais visitantes para olhar o espaço em branco do que os que haviam ido ver a obra-prima durante os 12 anos anteriores. Guardando as devidas proporções, a ausência tem um apelo e uma força incomensuráveis”, conclui.
Magistrada que esteve à frente do programa Pai Presente, mantido pela Justiça de Goiás, Claudia Silvia de Andrade Freitas aponta os danos da ausência de paternidade. “Mexe com o direito à identidade completa. No dia a dia, o indivíduo acaba não se sentindo um cidadão completo. Eu descobri isso conversando com as pessoas, trabalhando nos casos”, afirma a magistrada.
Leonora Brandão, promotora de Justiça de Defesa da Filiação no DF, enumera outras perdas. “Tem o direito a alimentos, a herança, que é a parte material e a que menos importa. O fundamental é o direito ao convívio socioafetivo com o pai e os familiares”, diz. Ela conta que, em 50% dos casos atendidos no Pai Legal, o reconhecimento se dá espontaneamente. Entre o restante, que pede teste de DNA, 30% dão resultado negativo. “O exame não é porque há resistência em assumir o filho, mas sim porque, em geral, foram relações muito eventuais e há dúvida”, explica.
Voluntário ou não, o procedimento para reconhecer um filho é muito fácil, explica Rogério Bacellar, presidente da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg-BR). “Basta que a pessoa procure qualquer cartório e dê entrada na nova documentação. Se for no mesmo local onde o filho foi registrado, a nova certidão sai na hora, sem qualquer custo”, afirma. Bacellar aponta a importância do documento. “A Certidão de Nascimento confere cidadania, existência perante o Estado. E hoje é muito acessível.”