A Defensoria Pública de SP obteve uma decisão judicial que determina a correção do registro de óbito de um homem morto em decorrência da atividade do regime militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Essa foi a primeira sentença proferida em uma das ações individuais ajuizadas em abril de 2014 para retificação de assentos de óbito de cinco pessoas mortas durante a ditadura.
Os pedidos decorrem de um acordo firmado entre a Defensoria Pública paulista e a Comissão Estadual da Verdade (Comissão Rubens Paiva), e são assinados pelos Defensores Públicos Daniela Sollberger (Defensora Pública-Geral do Estado entre 2010 e 2014), Julio Grostein e Gustavo Augusto Soares dos Reis. O objetivo é fazer com que constem nos registros os reais dados sobre data, local e causa da morte.
A sentença determinou a retificação do assento de Joaquim Alencar de Seixas, morto em 1971 em São Paulo. Segundo a versão oficial registrada na época, ele teria morrido às 13h de 16/4/71, na Avenida do Cursino, bairro do Ipiranga, devido a uma hemorragia interna traumática causada por sete projéteis de arma de fogo, “após travar violento tiroteio com os órgãos da segurança”.
Porém, o próprio Ministério do Exército documentou que Joaquim foi interrogado das 10h às 11h30 do dia 16/4/71, no DOI/CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), localizado na Rua Tutóia, nº 921. O Ministério Público e a Justiça concordaram que a informação torna inverossímil o relato de que ele morreu pouco depois num tiroteio em outro local.
Registros também indicam que o filho de Joaquim foi preso junto ao pai, e que na noite de 16/4 também foram presas sua esposa e as duas filhas, que presenciaram as torturas sofridas por Joaquim já no dia 17. Na noite dessa data, a esposa ouviu policiais referirem-se ao marido enquanto um corpo era colocado num carro.
As informações sobre a causa da morte também contrastam com parecer técnico pericial solicitado pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ e elaborado pelo perito médico Nelson Massini. O documento considera incompleto o laudo elaborado na época da morte e conclui que, além de ferimentos mortais de projéteis de arma de fogo, Joaquim sofreu outras lesões.
“No caso em análise, verifica-se trauma abdominal, craniano, dorsal, demonstrando um processo de espancamento, brutalidade a toda prova, o que nos leva à preocupação de que quando foi atingido pelos tiros já estivesse em estado comatoso devido ao violento trauma craniano sofrido”, afirma o parecer.
No dia 12/3/2015, a Juíza Renata Barros Souto Maior, da 2ª Vara de Registros Públicos do Foro Central Cível, acolheu parcialmente o pedido da Defensoria Pública. Ela determinou a retificação da data e do local do óbito, mas, apesar de considerar haver indícios de morte provocada por agente do Estado, não atendeu à solicitação para que constasse como causa da morte “tortura praticada por agente do Estado”, argumentando que a Lei de Registros Públicos não prevê indicação de autoria do crime.
Na sentença, a Juíza decidiu que devem constar como causa da morte “lesões perfurocontusas, provocadas por projéteis de arma de fogo, que causaram hemorragia interna traumática e lesões contusas, provocadas por espancamento, que causaram traumatismo craniano, abdominal e dorsal – tortura”.