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IBDFAM – No mês da visibilidade lésbica, casal registra com dupla maternidade filho concebido por inseminação caseira

Um casal homoafetivo conseguiu na Justiça o direito a registrar o filho com dupla maternidade. Casadas, as autoras realizaram inseminação caseira com material genético doado por pessoa anônima. A decisão é da 2ª Vara de Família e das Sucessões da Comarca de São Carlos, no estado de São Paulo.

No assento de nascimento da criança, constarão os nomes das duas mães, com disposição dos nomes dos avós sem distinção de ascendência materna ou paterna. O juiz responsável pelo caso destacou a necessidade de atender ao melhor interesse da criança, seus direitos constitucionais e também os previstos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.

“Em uma relação na qual o amor abunda, há maior chance de restar resguardada, com absoluta prioridade, a dignidade do recém-nascido, que tem direito de ver retratado nos registros públicos, no caso, em sua certidão de nascimento, a exata realidade fática da entidade familiar em que foi gerado, gozando da proteção jurídica completa a que faz jus, dentre as quais o direito à personalidade, de receber alimentos, de herdar etc.”, afirmou o magistrado.

Proteção às famílias homoafetivas

A decisão também ressaltou que é pacífico, no ordenamento jurídico brasileiro, um casal ter direito de manter relações afetivas e constituir entidade familiar protegida pela lei, independentemente da orientação sexual. O juiz observou ainda que o Supremo Tribunal Federal – STF já reconheceu a proteção às entidades familiares homoafetivas.

O Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM participou, em 2011, como amicus curiae da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 132, em que o STF reconheceu o direito à união estável homoafetiva e a proteção das famílias LGBTI.

Apesar de o regramento do Conselho Nacional de Justiça – CNJ versar sobre a emissão de certidão de nascimento dos filhos gerados por reprodução assistida, o magistrado entendeu que negar o direito ao registro no caso em tela seria um ato discriminatório em razão da condição econômica. O ato impediria a plenitude do desenvolvimento individual e assolaria a dignidade da pessoa humana da grande maioria da sociedade brasileira, como no caso em questão.

Mês da visibilidade lésbica

“Para esse casal de mulheres, o mês da visibilidade lésbica ganhou um motivo ainda maior para ser comemorado”, comenta a oficiala de registro civil Márcia Fidelis, presidente da Comissão de Notários e Registradores do IBDFAM. “No caso delas, por não ter havido nenhuma intercorrência que alterasse o planejamento inicial, registrar o filho com a dupla maternidade foi coroar o sucesso”, acrescenta.

A especialista destaca que a decisão da Justiça de São Paulo pela dupla maternidade atende também ao melhor interesse do filho. “A criança precisa de um lar estável para se desenvolver. Precisa ser acolhida, protegida, educada, amada. Garantir isso sempre atingirá os interesses de uma criança”, opina.

“A desassistência, o abandono, os conflitos e discussões que possam alienar o desenvolvimento sadio de uma criança é que têm que ser afastados, em qualquer hipótese. Duas mães, dois pais, um pai e uma mãe, uma mãe ou um pai, todos eles, juntos ou separados, podem ter filhos saudáveis e felizes”, defende Márcia.

Regramento sobre reprodução assistida

Chama atenção da oficiala de registro civil o entendimento do juiz de que haveria discriminação pelo fator social caso fosse negada a emissão da certidão com base no regramento do Conselho Nacional de Justiça – CNJ para reprodução assistida. “É indiscutível a obrigatoriedade de se observar o princípio da igualdade ao garantir às famílias o direito de terem filhos. E que é vedada a discriminação do cidadão em razão de sua situação financeira”, avalia Márcia Fidelis.

“Aplicar esses princípios para amparar e fundamentar o reconhecimento jurídico de técnicas de reprodução humana desassistida por profissionais da saúde, contudo, requer maiores discussões para que o resultado dessa informalidade não estabeleça conflitos familiares inimagináveis”, pontua.

Ela observa que vivemos uma fase de transição, de pluralização das entidades familiares e de mudanças conceituais profundas no âmbito da natureza dos vínculos de parentesco. A flexibilização das regras para procedimentos de reprodução assistida requer atenção, como ela destaca.

“A desbiologização ainda não é regra entre os aplicadores do Direito. Portanto, há que se estudar procedimentos que acautelem o anonimato de eventual doador de material genético, a não vinculação necessária da maternidade à parturiente cujo nome está expresso na Declaração de Nascido Vivo, ou seja, que seja absoluta a observância do projeto parental como fundamento da filiação por reprodução artificial.”

Ela atenta que, quando tudo isso está formalizado por meio da atuação de profissionais vinculados às regras éticas da medicina, que intermedeiam e garantem a observância do contrato firmado e de sua idoneidade, haverá um norte jurídico para a solução de eventual conflito. “Mesmo que haja posterior discussão quanto a essa filiação por questões emocionais, na dúvida, aplica-se o projeto parental, contratado por pessoas capazes, cientes do contrato que firmaram”, acrescenta Márcia.

Tema merece debate, estudo e cautela

A reprodução assistida envolve sentimentos essenciais aos seres humanos e, por isso, torna-se tema tão delicado. “Ter um filho é, sem dúvida, muito mais que um contrato ou um projeto expresso em papel. Ter filho envolve emoção, sentimentos e, principalmente, a vida de um cidadão que nascerá, fruto desse contrato, desse projeto.”

“Existem situações imprevisíveis que podem permear essa gestação que poderão impactar na definição da parentalidade dessa criança”, observa Márcia Fidélis. Casos de inseminação caseira, sem a assistência médica formal, podem dar origem a conflitos como os elencados pela diretora nacional do IBDFAM: “Como definir essa filiação se, ao nascer, a parturiente reivindicar a maternidade? E se o doador do material genético, masculino ou feminino, resolver fazer valer o vínculo biológico e discutir a paternidade ou a maternidade? E se a criança nasce com alguma deficiência que leve os autores do projeto parental à desistência da filiação? Como garantir o melhor interesse da criança diante desses fatos?”.

Controvérsias causadas por esses procedimentos já foram ilustrados na ficção, como em Fina Estampa, atualmente em reprise na TV Globo. “Na novela que está em horário nobre na TV aberta, a inobservância dos critérios éticos pelo médico responsável desestabilizou uma relação a que se entendia devidamente contratada”, comenta a oficiala, em atenção à trama que envolve a mãe que deu à luz (Júlia Lemmertz), a doadora de óvulo (Monique Alfradique) e uma médica geneticista (Renata Sorrah).

“O tema merece muitos debates, muitos estudos e, acima de tudo, muita cautela, como quase tudo em que está envolvido o sentimento humano, sua intimidade, sua privacidade. Essa é a beleza do Direito das Famílias. Isso é pensar e construir um mundo melhor, buscando diariamente relações humanas mais sólidas, mais felizes e mais justas”, finaliza Márcia Fidelis.