‘Não tenho pai, mas sou herdeiro: Histórias e registros de paternidades ausentes’. Em entrevista à Arpen/BR, autoras falam sobre o projeto e a relação do tema com o RCPN.
As histórias e vivências pessoais das jornalistas Alice Machado e Isabelle Chagas, relacionadas à relação afetiva com suas próprias famílias, e o desejo de investigar a complexa rede de envolvimentos que está por trás dessa relação, foi o que as motivou a produzir o livro-reportagem “Não tenho pai, mas sou herdeiro: Histórias e registros de paternidades ausentes”. Inicialmente elaborado como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apresentado em 2017, o projeto foi tomando forma até ser publicado com apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte/MG, neste ano.
Em entrevista à Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), as jornalistas contam como foi o processo de elaboração do projeto e o que ele apresenta ao leitor. “No início da produção, tínhamos a intenção de contar histórias de mães que criaram os filhos sozinhas e de filhos que não conheceram o pai”, explica Alice. A partir disso, passaram a analisar como o tema da paternidade ausente costuma ser tratado na mídia, e perceberam que existia uma lacuna na abordagem. “Os pais geralmente apareciam apenas por meio das falas das mães ou dos filhos que não viviam na presença desses homens, e começamos a se indagar como seria conversar com os próprios pais, ouvir o seu lado, e foi isso que serviu de estimulo final para a produção da reportagem”.
Outro ponto comum à representação da carência paterna na mídia ou nas obras que tratam do assunto, segundo a jornalista Isabelle Chagas, é a literalidade atrelada ao conceito de ausência. Ou seja, muitas vezes, só é considerado um pai ausente aquele que não esteve fisicamente presente na vida de seu filho, o que é contestado pelos depoimentos colhidos no projeto. “Tratando da ausência conseguimos abordar uma série de experiências diversas, muitas das quais nem encararíamos como ausência. Filhos que moram com seus pais e conversaram conosco falaram que entendem a relação que tiveram com seus progenitores como uma relação de ausência, já que nunca houve contato, efetivamente”, explica.
O livro é formado por histórias relatadas por pais, mães e filhos que tiveram suas vidas marcadas pela ausência paterna, sejam elas físicas, afetivas, morais ou financeiras. Além disso, também são apresentadas reportagens informativas sobre temas que atravessam essa questão principal. “Abordamos assuntos como o processo de reconhecimento de paternidade, questões de gênero, o tratamento dado pelas constituições brasileiras ao longo dos anos para as questões de família, a prisão por falta de pagamento de pensão alimentícia, entre outras questões”, conta Alice.
Segundo as autoras, o objetivo da obra não é apresentar respostas ou soluções definitivas para a questão da ausência paterna no Brasil. A ideia é estabelecer uma análise de toda a conjuntura social e política que afeta as relações parentais, olhar para as experiências diversas e entender por que as relações estão se dando dessa forma e o que a sociedade, no geral, pode fazer para mudar esse cenário. “Falar apenas de comportamentos de homens que vão embora, que não assumem uma paternidade, é algo que não dá conta de explicar toda a questão. É por isso que tocamos no ponto das masculinidades, das relações de gênero, de um cuidado mais amplo de todas as pessoas e de si mesmo, da raça e da classe, trazendo esse olhar interseccional”, afirma Isabelle.
RCPN e a paternidade
São muitas as emoções envolvidas no dia a dia de quem vive uma realidade atravessada pela paternidade ausente. Isabelle conta que, durante as entrevistas realizadas para elaboração do livro-reportagem, alguns personagens falaram a respeito do constrangimento que sentem com relação à inscrição de “pai desconhecido” em suas certidões de nascimento. Isso é algo que deixou de existir em 2017, com a publicação do Provimento nº 63, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que instituiu o novo modelo para as certidões de nascimento, sem os campos “pai” e “mãe”, mas, sim, com o novo campo denominado “filiação”. Para a jornalista, se trata de um enorme avanço para quem não possui o nome do pai em seu registro.
A jornalista também reforça o amparo concedido pelos Cartórios de Registro Civil às mães e aos filhos que buscam o reconhecimento tardio de paternidade. Trata-se de um processo que foi desburocratizado a partir do Provimento nº 16 do CNJ, de 2012, que permitiu, nos casos de concordância do genitor, a realização do procedimento de forma gratuita em qualquer Cartório de Registro Civil, sem a necessidade de procedimento judicial e a contratação de advogado. “Vimos a potencialidade desse Provimento na prática, quando as mulheres podem chegar nos Cartórios e serem ouvidas, atendidas, sem a necessidade de uma série de processos e mecanismos complexos ou impeditivos”, conclui Isabelle.