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Para tribunais, Serasa fornece dados ilegais

Graças aos serviços da Serasa Experian é possível saber que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deve ter ido à joalheria Tiffany & Co. uma semana antes do último dia dos namorados, no dia 5 de junho, quando a loja consultou seu nome na Serasa. Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva parece ter ido às compras nas lojas de departamento Nosso Lar, que tem filiais em Tocantins e no Pará — e buscou saber seu crédito no último dia 7. Também se pode verificar que o perfil do senador Ivo Cassol na Serasa foi consultado pela Petrobras Distribuidora 15 dias antes de ele ser condenado pelo Supremo Tribunal Federal. Já a construtora MRV Engenharia andou procurando mais informações sobre a saúde financeira do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral.

Até o começo da semana, as informações acima podiam ser acessadas por qualquer assinante dos serviços da Serasa, por cerca de R$ 10 a consulta. Depois que a ConJur publicou reportagem revelando as distorções das avaliações do serviço, repercutida pela colunista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo, os relatórios sobre esses e outros políticos foram removidos do sistema, segundo o jornal. São diversas as suposições que podem ser feitas com as relações entre os políticos e as empresas que consultaram seus nomes, mas o entendimento da Justiça a respeito tem se firmado em um só: é ilegal. Mostrar os últimos estabelecimentos que consultaram o perfil do consumidor na Serasa vai contra o Código de Defesa do Consumidor, segundo os tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio Grande do Sul. 

“Não pode haver, como se pretende, supremacia do interesse dos estabelecimentos comerciais e bancários sobre o do consumidor, invadindo a privacidade deste, com a revelação desautorizada de suas eventuais relações comerciais”, diz acórdão da corte paulista em Ação Civil Pública que condenou a Serasa a pagar R$ 100 mil por manter o cadastro. A decisão é de 17 de janeiro deste ano — cabe recurso.

Segundo o acórdão, cujo relator é o desembargador Carlos Henrique Miguel Trevisan, o registro de consultas anteriores — também chamado de “cadastro de passagens” — vai contra o CDC porque o sistema não dá ao consumidor o conhecimento das informações a seu respeito que constam do banco de dados, impedindo, assim, que possa ser exigida a retificação de eventuais inexatidões anotadas, “além de permitir interpretação imprecisa acerca das informações cadastradas”.

As interpretações em questão vão além da bisbilhotice sobre a vida de famosos — como saber por que o site ingresso.com se preocupou em buscar o crédito do senador Renan Calheiros (foto) em abril deste ano ou por que o Banco do Nordeste andou procurando informações sobre o possível candidato a presidente da República Eduardo Campos. As interpretações que chegam ao Judiciário são de lojistas que, ao verem um histórico de consulta, negam-se a dar crédito a um cidadão, imaginando que ele já esteja comprometido com as lojas ou instituições financeiras que constam da lista.

“O prejuízo e a discriminação fazem parte desse jogo pesado onde empresas avaliam consumidores como números e já não há mais a preocupação com a fidelização do cliente. Sabe-se que o consumo aumenta, e se aquele consumidor não adquirir determinado produto ou serviço, outro virá em seu lugar”, afirma o advogado Rogério Rocha, sócio do escritório Péricles, Rocha, Mundim e Advogados Associados. 

O sistema da Serasa estabelece, com base em dados obtidos para outras finalidades, uma classificação das pessoas segundo sua possibilidade de adquirir crédito, explica o advogado Paulo Donadelli, especialista em Direito Constitucional do escritório Vianna & Gabrilli. “Como se fosse estabelecido um sistema de ‘castas’ de crédito, sem que o cidadão sequer saiba que foi classificado.”

Não é apenas a lista de consultas anteriores que tem chegado às cortes. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina também tem decidido que só a inclusão de dados no sistema sem comunicar ao consumidor em questão é ilegal e que o cidadão merece ser indenizado por isso. Vale dizer que, pelas decisões da corte, o simples fato de o cadastro existir, gerando uma “possível restrição ao crédito”, motiva indenização.

No TJ do Rio Grande do Sul já são várias as ações em que ficou decidido também que é necessária a aprovação do consumidor para que haja um cadastro a seu respeito. “É abusiva a prática comercial de utilizar dados negativos dos consumidores para lhes alcançar uma pontuação, de forma a verificar a probabilidade de inadimplemento. Sem dúvidas, este sistema não é um mero serviço ou ferramenta de apoio e proteção aos fornecedores, como quer fazer crer a demandada, mas uma forma de burlar direitos fundamentais, afrontando toda a sistemática protetiva do consumidor, que inegavelmente se sobrepõe à proteção do crédito”, diz decisão da desembargadora Marilene Bonzanini.

Erros e riscos
Se a própria existência dos dados é um problema para a Justiça e para os consumidores, a qualidade das informações é um problema também para o lojista ou para a instituição financeira que se fia na Serasa para conceder ou negar crédito. Dois dias depois de a revista eletrônica Consultor Jurídico noticiar que as informações que a Serasa Experian passa ao mercado são pura fantasia, a empresa tirou de seu sistema dados de políticos como Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva, usados como exemplos pela reportagem. O login e a senha usados para acessar as informações também foram cancelados pela Serasa nove horas depois da publicação da notícia.

As informações dos políticos mostram que o serviço prestado pela Serasa é fantasioso. O crédito sugerido para a presidente da República é de R$ 2,1 mil; para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, R$ 778; para Lula (foto), R$ 10.894; e para o presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, R$ 25.896. (veja tabela abaixo)

O serviço também se presta a dizer a renda presumida de cada cliente. Nesses dados também ficam claros os erros. O ministro Joaquim Barbosa, cuja remuneração bruta de R$ 31 mil é pública e consta no próprio site do STF, tem, para a Serasa, renda mediana de R$ 2.986. A presidente da Republica, Dilma Rousseff, teria renda de R$ 3,7 mil.

Para o consumidor, tais distorções são péssimas, simplesmente porque levam muitas vezes a que seja negado crédito a uma pessoa que realmente possui capacidade financeira, explica Ana Paula Oriola de Raeffray, sócia do Raeffray Brugioni Advogados. 

A solução apresentada pela Serasa para a insegurança causada pelos erros em seus cadastros é que os clientes busquem informações de outras fontes que não o serviço que pagam à Serasa para obter. A afirmação está em notificação recebida pela ConJur, na qual, em vez de responder às perguntas feitas pela reportagem, a Serasa Experian exigiu que o site tirasse do ar a notícia que tratava do assunto.

Dados públicos
Cabe lembrar que o cadastro é feito com diversas informações cedidas pelo poder público. O Tribunal Superior Eleitoral tem discutido um acordo entre a corte e a Serasa que previa o envio de dados de eleitores à empresa. O acordo foi anulado pela presidente do tribunal, ministra Cármen Lúcia, e a corte concedeu prazo para que a Serasa se manifeste. 

Para o advogado Antonio Fernando Pinheiro Pedro, os dados e informações pessoais fornecidos por obrigação legal a tribunais e órgãos públicos constituem direitos públicos individuais constitucionais sob guarda das instituições. Negociar esse patrimônio ou cedê-lo a terceiros por qualquer forma que não seja mediante mandado judicial obtido no bojo de procedimento processual, diz o advogado, “constitui improbidade administrativa”.

É dever do Estado garantir o sigilo, que pode ser afastado em situações excepcionais, como em convênios com outros entes públicos visando melhorar o próprio serviço do Estado, explica o advogado eleitoral Dyogo Crosara. Em recente convênio firmado com o Ministério da Previdência, lembra ele, o cruzamento do cadastro eleitoral com o banco de dados do INSS permitiu checar se pessoas que já faleceram ainda constavam como aptas na lista de eleitores. Também permitiu o cancelamento de aposentadorias de pessoas que no cadastro eleitoral apareciam como mortas.

Já no convênio com a Serasa “não há interesse público que justifique a quebra do sigilo das informações do cadastro eleitoral, bem como a entidade que receberia os dados não é uma entidade pública, mas sim um ente privado”, diz o advogado.

Veja abaixo alguns exemplos da disparidade entre o limite de crédito sugerido pela Serasa Experian e a renda presumida também pela empresa:

Nome / Limite de crédito sugerido / Renda presumida
Joaquim Barbosa / 5.896 / 2.986
Henrique Eduardo Alves / 15.676 / 16.315
Renan Calheiros / 12.741 / 11.912
Lula / 10.894 / 3.232
Ivo Cassol / 8.103 / 9.757
Sérgio Cabral / 4.373 / 4.615
Geraldo Alckmin / 2.933 / 11.110
Daniel Dantas / 2.730 / 6.516
Tiririca / 2.198 / 12.553
Dilma Rousseff / 2.101 / 3.700
José Serra / 2.098 / 3.416
Abílio Diniz / 2.042 / 14.230
Aécio Neves / 1.660 / 9.368
Demóstenes Torres / 1.621 / 3.014
Nicolau dos Santos Netto / 1.600 / 2.860
Paulo Maluf / 1.551 / 2.607
Marina Silva / 1.547 / 5.508
Natan Donadon / 1.165 / 1.902
Eduardo Campos / 938 / 2.971
Fernando Henrique Cardoso / 778 / 1.207
Protógenes Queiroz / 751 / 4.788
Carlinhos Cachoeira / 319 / 13.391
Eike Batista / Não disponível / 14.462

Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.