O Projeto de Lei nº 1902/22 assegura a casais homoafetivos o direito de obter o registro civil de filhos gerados a partir de inseminação artificial heteróloga realizada fora de clínicas especializadas
O Projeto de Lei nº 1902/22, de autoria da deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP), tem o objetivo de assegurar o direito de um casal homoafetivo registrar uma criança fruto de inseminação artificial heteróloga, que é quando um casal decide ter filhos a partir da utilização do sêmen de um doador, visando a fecundação do óvulo da mulher.
Atualmente, não existe uma legislação que regulamente a inseminação artificial no Brasil. No entanto, o registro civil dessas crianças é pautado pela Resolução 2294/2021 do Conselho Federal de Medicina (CFM) e pelo Provimento Nº 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
“O PL 1902/2022 busca preencher uma lacuna legal/regulamentar que dificulta o registro de crianças por casais que realizam procedimentos de inseminação artificial fora de clínicas e centros especializados em reprodução humana, que em geral são acessíveis apenas a pessoas com alto poder aquisitivo”, destaca a autora do projeto de lei em entrevista para a Arpen-Brasil.
De acordo com a parlamentar, o PL, ao se estabelecer como um marco legal para o registro dessas crianças, será uma grande conquista para casais de mulheres com menor poder aquisitivo, pois elas não possuem dos documentos de inseminação artificial assistida e também pela questão de que “não é possível pressupor tratar-se de filho biológico de ambas”.
A deputada ainda faz um alerta para a falta de regulamentação sobre o procedimento caseiro que pode acarretar na discriminação por orientação sexual no registro dos filhos de casais de mulheres, uma vez que exclui a mãe que não gestou da certidão de nascimento.
“Para lidar com esta disparidade o projeto busca estabelecer um marco legal mínimo que assegure o pleno direito ao registro civil das crianças geradas por inseminação artificial, com o reconhecimento da parentalidade e os efeitos jurídicos dela decorrentes. Para tanto, prevê como necessário a apresentação de dois documentos para efetivação do ato: a Declaração de Nascido Vivo (DNV), emitido pelos profissionais e instituições que atendem a partos logo após o nascimento com vida do bebê, e um documento comprobatório de vínculo conjugal. Busca-se assim, além da simplificação do ato, garantir que a parentalidade assentada no registro de nascimento decorra de uma relação conjugal de fato”, explicou Bomfim.
Conforme o projeto, o oficial de registro civil, desde que não impeça o registro e a emissão da certidão de nascimento, poderá exigir outros documentos para o caso de inseminação heteróloga ocorrida fora de estabelecimento de reprodução humana, segundo normativa a ser expedida pelo CNJ.
O PL, segundo a deputada, ainda trará segurança jurídica para os casais e, principalmente, para as crianças. Em inseminação artifical caseira, o doador do material genética e a mulher podem estabelecer algum laço afetivo, por exemplo amigos, ex-parceiros ou até mesmo familiares. Por conta disso, “projeto determina que o conhecimento da ascendência biológica não importará em reconhecimento de vínculo de parentesco e dos respectivos efeitos jurídicos entre o doador e o filho gerado”, garantindo a segurança jurídica daquela família.
“Ao mesmo tempo, o projeto determina o controle judicial quando houver suspeita de “fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade, simulação ou dúvida sobre a configuração do estado da posse de filho”, a partir de recusa fundamentada do registrador cartorário responsável pelo ato”, pontuou.
O texto está sendo analisado pela Câmara dos Deputados.
Inseminação artificial caseira
A inseminação caseira é uma forma de engravidar sem sexo ou ajuda de médicos. O casal busca um doador de sêmen, que faz a coleta do esperma. O material genético é então colocado em uma seringa e injetado no corpo pela mulher que deseja engravidar. No entanto, médicos não recomendam a prática, pois pode trazer riscos à saúde.
O método é crescente no Brasil, principalmente entre casais de mulheres que buscam ter filhos, mas não podem pagar pela inseminação artificial assistida em clínicas especializadas. A partir disso, são inúmeros os grupos nas redes sociais que buscam conectar doadores e casais.
A deputada Sâmia Bomfim, autora do PL 1902/22
Leia a entrevista na íntegra:
Arpen-Brasil – Qual a motivação para a criação do Projeto de Lei 1902/22?
Sâmia Bomfim – O Projeto de Lei nº 1902/2022 tem por objetivo estabelecer um marco legal que oriente o registro de crianças provenientes de inseminação artificial heteróloga (aquela realizada com material genético de um doador), independentemente da forma e local em que ocorreu a inseminação ou de prévia autorização judicial. Foi apresentado na Câmara dos Deputados no final do mês de junho de 2022, em consideração ao marco internacional de junho como o Mês do Orgulho LGBTQIA+, tendo em vista o impacto da proposição sobre as famílias composta por casais de mulheres.
Conforme dispõe a justificativa do PL 1902/2022: “Objetivamente, essa dificuldade reforça a discriminação de casais que não correspondem ao padrão da heteronormatividade, além de impedir que muitos casais sem recursos para custear o procedimento em estabelecimentos especializados em reprodução assistida tenham tratamento igualitário, fazendo com que apenas casais com alto poder aquisitivo consigam ter garantido tal direito. Não obstante, a ausência de lei que assegure o assento de nascimento de filho havido por inseminação artificial heteróloga ocorrida fora destes estabelecimentos também onera o poder judiciário na medida em que casais que encontrarem dificuldades do registro civil de seus filhos terão que ingressar com ações judiciais, postergando o direito e sobrecarregando os tribunais”.
Arpen-Brasil – O que diz a lei hoje sobre registro de crianças fruto de inseminação caseira e como ficaria com a aprovação do PL?
Sâmia Bomfim – É importante pontuar que atualmente não existe legislação específica que regule a inseminação artificial. Utiliza-se a Resolução 2294/2021 do CFM (Conselho Federal de Medicina) no tocante às normas éticas, exigências e procedimentos de ordem clínica que devem ser observadas por médicos e centros especializados de reprodução humana; e o Provimento Nº 63 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) quanto às regras cartoriais para o registro de nascimento das crianças havidas por intermédio destas técnicas, de observância dos ofícios de registro civil. É sobre esta dimensão – a do registro civil e suas decorrências– que esta proposição se direciona.
O PL 1.902/2022 busca preencher uma lacuna legal/regulamentar que dificulta o registro de crianças por casais que realizam procedimentos de inseminação artificial fora de clínicas e centros especializados em reprodução humana, que em geral são acessíveis apenas a pessoas com alto poder aquisitivo. Para estes casos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) prevê, em seu provimento, os requisitos para o registro dos recém-nascidos, dentre os quais a apresentação de declaração assinada pelo diretor técnico da clínica. Já para os casos de inseminação artificial realizados fora de clínicas especializadas – amplamente conhecidos como procedimentos de “inseminação caseira” –, apesar de perfeitamente regulares e não proibidos pela legislação, impera a omissão e a informalidade, cujos efeitos são percebidos no momento do registro da criança nos cartórios de registro civil.
Arpen-Brasil – De que maneira a falta de regulamentação da inseminação caseira por parte dos órgãos oficiais, como CNJ, afeta casais homoafetivos que desejam realizar o procedimento?
Sâmia Bomfim – Aludida lacuna não impede que estes procedimentos sejam largamente realizados, sendo fácil localizar nas redes sociais grupos e comunidades cujo foco é viabilizar o contato de casais e mulheres com doadores de sêmen. Nestes fóruns, casais com problemas de fertilidade masculina, casais homoafetivos de mulheres, mulheres que almejam uma gestação independente e homens interessados em disponibilizar seu sêmen para reprodução, interagem e viabilizam os procedimentos entre si, feitos em geral com a introdução do material genético do doador diretamente na vagina da futura gestante por meio de seringas descartáveis. Com os devidos cuidados para com a saúde da mulher – dado os riscos de contaminação por doenças sexualmente transmissíveis –, trata-se de procedimento simples de reprodução humana, sobre o qual não incide qualquer tipo de limitação de ordem econômica, sendo por esta razão amplamente difundida.
Ocorre que, como resultado desta falta de regulamentação, cartórios de registro civil comumente opõem obstáculos no assento de nascimento de crianças havidas por inseminação caseira, especialmente quando provém de casais de mulheres. Isso ocorre porque além de não possuírem os documentos exigidos pelo CNJ para registro de inseminação artificial assistida por médicos – única regulação existente sobre a matéria -, no registro de criança por duas mulheres não é possível pressupor tratar-se de filho biológico de ambas. No caso de casais heterossexuais, por sua vez, há o benefício do silêncio: se não expõem qual o método reprodutivo utilizado, presume-se tratar de filho biológico do casal, e seu registro será feito sem maiores dificuldades.
Arpen-Brasil – A aprovação do PL deve suprir a falta de regulamentação no registro de nascimento?
Sâmia Bomfim – Apesar da legislação determinar formalmente a não discriminação por orientação sexual no assento dos registros públicos, a ausência de regulamentação da inseminação caseira gera, objetivamente, uma discriminação no registro dos filhos por casais de mulheres, implicando na exclusão do registro da mãe não gestante na certidão de nascimento. Nestes casos acaba sendo indispensável a intervenção do poder judiciário, que tem consolidado entendimento no sentido de assegurar o registro destas crianças por ambas as mães.
Para lidar com esta disparidade o projeto busca estabelecer um marco legal mínimo que assegure o pleno direito ao registro civil das crianças geradas por inseminação artificial, com o reconhecimento da parentalidade e os efeitos jurídicos dela decorrentes. Para tanto, prevê como necessário a apresentação de dois documentos para efetivação do ato: i) a Declaração de Nascido Vivo (DNV), emitido pelos profissionais e instituições que atendem a partos logo após o nascimento com vida do bebê, e ii) um documento comprobatório de vínculo conjugal, como “certidão de casamento, certidão de conversão de união estável em casamento, escritura pública de união estável ou sentença em que foi reconhecida a união estável do casal”. Busca-se assim, além da simplificação do ato, garantir que a parentalidade assentada no registro de nascimento decorra de uma relação conjugal de fato. Por óbvio, será dispensável a comprovação de vínculos nos casos de gestação independente.
Arpen-Brasil – O que espera com a aprovação do PL?
Sâmia Bomfim – A perspectiva em estabelecer um marco legal mínimo tem por premissa o papel regulamentador que é exercido pelo CNJ junto aos serviços notariais e de registro que atuam por delegação do poder público. Esta reserva legal possibilita que o ato de registro seja futuramente tratado no detalhe, cabendo ao CNJ disciplinar fluxos e padrões, adaptar modelos de certidões, determinar prazos, dentre outras questões de natureza cartorial. Desta forma, desde que não inviabilize a realização do registro, outros documentos poderão ser solicitados a partir de previsão em normativa própria do órgão, respeitando sua atribuição legal em disciplinar a matéria junto aos ofícios civis.
Apresentados quais os requisitos estabelecidos para o registro de crianças resultantes de inseminação artificial, trataremos a seguir de seus efeitos:
Elemento fundamental da complexidade legal da inseminação caseira é a que se refere ao reconhecimento de vínculo de parentesco com o doador. No caso da inseminação assistida, o CFM, em sua resolução, impõe obrigatoriedade de sigilo sobre a identidade dos doadores, sendo de responsabilidade das clínicas a guarda de dados e informações apenas para eventual necessidade médica futura, não sendo possível, em hipótese alguma, o acesso à sua identidade. Tal restrição, por si só, é um grande escudo para futuros conflitos, e mesmo que por algum acaso se descubra o vínculo genético, a normativa em vigor impossibilita o reconhecimento jurídico de parentesco. Na inseminação caseira, naturalmente, não há esta salvaguarda.
Aliás, a relação direta que é estabelecida entre o doador e a receptora pode levar a configurações afetivas e familiares de novo tipo, podendo o pai biológico coexistir na vida do filho ou ser de conhecimento deste, sem no entanto exercer ou lhe ser conferido poder familiar (ou como se entendia na antiga doutrina, o pátrio poder). Estas situações, não tão incomuns, são percebidas entre doadores e receptoras que possuem vínculo de afinidade prévio enquanto amigos, ex-parceiros ou mesmo familiares, sendo mais comuns nos casos de mulheres que buscam uma gestação independente e de casais de mulheres. Importante salientar que o projeto não inaugura estas relações de afetividade, mas busca conceder proteção jurídica a elas.
Neste sentido, trazendo segurança jurídica ao ato do registro, o projeto determina que o conhecimento da ascendência biológica não importará em reconhecimento de vínculo de parentesco e dos respectivos efeitos jurídicos entre o doador e o filho gerado. Na falta de regulação esta garantia atualmente inexiste, havendo quando muito acordos escritos sem validade jurídica, que não impedem demandas judiciais futuras relativas a reconhecimento de parentesco. Ao mesmo tempo, o projeto determina o controle judicial quando houver suspeita de “fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade, simulação ou dúvida sobre a configuração do estado da posse de filho”, a partir de recusa fundamentada do registrador cartorário responsável pelo ato.
Outra dimensão sensível em que se busca conferir maior segurança jurídica é a que trata da declaração de anuência entre os cônjuges ou companheiros para a realização da inseminação caseira. Ao passo que na inseminação assistida há formalização da vontade do casal para realização do procedimento, na inseminação caseira, dada a sua informalidade, não há instrumentos que os protejam de eventuais vicissitudes da relação ao longo da gestação. Assim, o projeto possibilita ao casal a celebração de instrumento particular com firma reconhecida e na presença de duas testemunhas, que terá caráter irrevogável e irretratável, para fins de reconhecimento da filiação na hipótese de fim da relação antes do registro de nascimento do filho, preservando os direitos de ambos e, principalmente, o da criança.
Não menos importante, por tratar de técnicas diretamente relacionadas à inseminação artificial, o projeto também estabelece garantias mínimas para os casos de gestação por substituição (popularmente conhecido como “barriga de aluguel”), quando há a cessão do útero para a gestação de um bebê de outra mulher, sem participação genética daquela que gesta o feto; e de inseminação artificial post mortem, quando a inseminação se dá com o uso de material genético de pessoa já falecida. Determina-se, nestes casos, a não inclusão do nome da parturiente no registro, mediante apresentação de termo de compromisso previamente firmado, e termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado.
Por fim, para adequar a legislação vigente, o projeto altera a redação do inciso V do artigo 1.597 do Código Civil, que presume concebido na constância do casamento os filhos “havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”. Na nova nova redação proposta, determina-se que serão presumidos os filhos “havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia anuência de ambos os cônjuges ou, se o casal estiver em união estável, de ambos os companheiros”, retirando-se o caráter patriarcal da disposição legal em vigor.
Fonte: Assessoria de comunicação – Arpen-Brasil