Logo Arpen BR Horizontal

Ouvidoria

Home / Comunicação

Notícias

Quando esbarram na burocracia, brasileiros recorrem ao Poder Judiciário

Rafaela Vieira de Lima esperou 24 anos para existir. Nasceu Raphaella, em Maceió (AL), há 26 anos, mas não é isso que diz sua certidão de nascimento, onde consta que ela é natural de Aracaju (SE). Até pouco mais de dois anos atrás, ela fazia parte dos 3 milhões de brasileiros que não possuem nenhum tipo de registro civil. É o que estima o levantamento mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019.

 

A jovem se mudou para a capital sergipana ainda bebê, aos dois anos de idade. Na época, seus pais ainda não haviam registrado seu nascimento. Pouco após a mudança, a família foi acometida por uma das tantas enchentes que já atingiram a região do Largo da Aparecida, no bairro Jabotiana. Foi nesse cenário em que, além de muitos outros documentos, foi perdida a Declaração de Nascido Vivo (DNV) de Rafaela, certidão emitida pela maternidade e exigida pelos cartórios para que a criança seja oficialmente registrada.

 

Durante anos os pais de Rafaela tentaram registrá-la em Aracaju, mas a ausência da DNV era um obstáculo em todos os cartórios. Muitos registradores chegaram até a duvidar e questionar a legitimidade da paternidade do casal. A família recorreu ao Poder Judiciário, mas a morosidade do processo os levou à desistência.

 

A falta do registro de nascimento tirou de Rafaela sua dignidade e cidadania. Durante os 24 anos em que ela “não existiu” para o Estado, teve acesso negado aos mais diversos tipos de serviço básicos.

 

Com a ajuda de algumas pessoas, conseguiu ter acesso à educação, mas não possui nenhum documento que comprove que ela estudou. Quando precisou de assistência em saúde, na grande maioria das vezes teve o auxílio negado, pois sempre era solicitada alguma documentação de identificação.

 

O seu primeiro filho, atualmente com 7 anos de idade, também só foi registrado há dois anos, pois a ausência da documentação da mãe impossibilitava a emissão da sua certidão de nascimento.

 

Apesar de todas as dificuldades enfrentadas, a burocracia e a morosidade no processo de emitir o registro de nascimento tardio desestimularam Rafaela a resolver a pendência mais cedo. Ela só o fez quando engravidou do seu segundo filho, de 2 anos de idade, pois não queria que, assim como ela e o seu primogênito, o caçula encontrasse tantos obstáculos durante a vida. Para isso, Rafaela precisou contratar uma advogada e pagar por um direito que já era seu.

 

É o que a jornalista e professora universitária Fernanda da Escóssia, autora do livro “Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento”, chama de “urgência de legibilidade” e “situação-limite”.

 

“O indocumentado vai negociando várias situações, resolvendo como pode, mas há um momento em que suas estratégias de negociação se esgotam e ele precisa se tornar legível pelo Estado imediatamente, para resolver o problema que se apresentou e ele não consegue resolver por não ter documentos”, explica a especialista.

 

A ausência da certidão de nascimento acarreta na impossibilidade de emitir qualquer outro tipo de documentação, como o Registro Geral (RG) – conhecido como carteira de identidade -, o Cadastro de Pessoa Física (CPF), a Carteira Nacional de Habilitação – ou carteira de motorista -, a carteira de trabalho e o título de eleitor, que garantem ao cidadão o acesso aos mais diversos serviços. O fato de não possuir esse último, por exemplo, exclui o cidadão até mesmo do processo eleitoral, visto que, sem ele, não é possível votar e escolher os representantes da democracia. 

 

“Na prática, não ter documentos significa não votar, não ter bens em seu nome, não viajar, não registrar os filhos. Quem não tem documentos não tem acesso às políticas de assistência social e benefícios previdenciários, por exemplo. E tem acesso limitado aos sistemas de saúde e educação. Assim, quem não tem documentos é excluído do mundo dos direitos”, detalha Fernanda da Escóssia.

 

Além de todas os empecilhos gerados pela falta de documentos, Fernanda da Escóssia aponta ainda que o “indocumentado” enfrenta uma série de dificuldades quando finalmente decide realizar o registro de nascimento tardio. É necessário que a pessoa comprove que é quem diz ser, apresentando testemunhas capazes de atestar sua identidade. Nessas situações, o registrador precisa fazer uma busca em cartórios, para saber se aquele indivíduo realmente não foi registrado anteriormente.

 

Em seu estudo, Escóssia chama essa burocracia e indiferença do poder público de ‘síndrome do balcão’. “Muitas vezes o cidadão ou cidadã busca um balcão público para conseguir seu registro – mas não só não consegue atendimento como não consegue nem mesmo orientação sobre como proceder. E o cidadão é jogado de balcão em balcão, durante anos”, afirma a jornalista.

 

Nesse sentido, a especialista considera o papel do Poder Judiciário fundamental, visto que registrar um adulto sem documentos costuma exigir a intermediação de um juiz. Em seu livro, ela discute a necessidade de facilitar o acesso da população brasileira à pasta, e de que forma ela tem lugar central como formuladora de políticas públicas.

 

O que explica o registro tardio

 

No Brasil, a Lei 6.016/1973 determina que todos os nascimentos devem ser registrados dentro de um prazo de 15 dias, que pode ser prorrogado para três meses, caso a distância entre o cartório de registro civil e o lugar de parto ou domicílio for maior que 30 quilômetros.

 

Em Sergipe, o IBGE estima uma subnotificação de 1,94% dos nascimentos. Isso significa que, dos 32.662 bebês nascidos no estado em 2019, 634 podem não ter sido oficialmente registrados.

 

O número de sergipanos que vivem sem a carteira de identidade até a vida adulta é ainda mais chocante. De acordo com dados apresentados pelo Instituto de Identificação da Secretaria de Estado da Segurança Pública de Sergipe (SSP/SE), 8.304 pessoas com idade igual ou superior a 18 anos solicitaram a primeira via do RG em 2021, e somente no primeiro semestre de 2022, foram solicitadas 4.152, sendo que a grande maioria chegou ao final do processo de emissão.

 

Existe uma série de fatores que podem levar uma pessoa a ser registrada de forma tardia. A presidente da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) em Sergipe, Rejane Guimarães, explica que, de modo geral, as principais causas são a falta de acesso ao serviço e a desinformação, como no caso de comunidades isoladas.

 

Nesse sentido, há a movimentação de entidades competentes para tentar reverter esse cenário, por meio de campanhas e iniciativas de aproximação com essas pessoas. “Os cartórios vêm lutando, junto às secretarias de Estado de Saúde, conselhos tutelares e Tribunais de Justiça, para que a gente acesse essas comunidades e faça o registro civil dessas pessoas”, diz Rejane Guimarães.

 

Contudo, existem algumas situações específicas muito recorrentes que também levam uma pessoa a não ser registrada oficialmente, como o não reconhecimento da paternidade. A presidente da Arpen/SE aponta que, quando um pai não quer registrar a criança por livre e espontânea vontade, é possível que a mãe se sinta constrangida, magoada ou ressentida com aquela realidade, não se sentindo à vontade para emitir a certidão de nascimento sozinha.

 

Entretanto, Rejane explica que, com o auxílio do Poder Judiciário, é possível que essa mulher indique o “suposto pai” da criança, para que seja realizado o teste de DNA. “Sendo confirmada a paternidade, independentemente de o pai querer ou não, é feito o registro em relação a essa paternidade”, afirma.

 

Outro caso apontado pela presidente da Arpen/SE é quando o pai ou a mãe da criança possuem mandado de prisão em aberto. “Ele acha que ao ir ao cartório registrar a criança, ele vai ser preso automaticamente. Não acontece nada disso; nós não temos acesso ao processo, não sabemos se a pessoa tem ou não mandado de prisão, para nós não interessa. Não precisa apresentar nenhuma certidão criminal, basta estar lá fisicamente com a sua documentação e fazer o registro”, esclarece Rejane Guimarães.

 

Ao longo dos anos, algumas iniciativas que visam mudar esse cenário vêm sendo desenvolvidas. Em 2007, foi criado um Plano Nacional de Combate ao Sub-registro, com a implementação de comitês estaduais e municipais. Houve também a instauração de postos dos cartórios dentro das maternidades, o que facilita o registro dos recém-nascidos.

 

Mais que um nome

 

Além de garantir a promoção da cidadania, os documentos são uma ferramenta de acesso a algo que é um direito de todos: o respeito. No Brasil, em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu às pessoas transexuais a possibilidade de fazer a alteração do nome e do gênero em todos os documentos e registros civis. A decisão foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

 

No mesmo ano, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) também publicou portaria que regulamentou a inclusão do nome social no cadastro eleitoral, levando ao grupo um maior conforto no momento de exercer o dever democrático.

 

Não é necessário nenhum tipo de autorização judicial prévia ou comprovação de cirurgia de redesignação de sexo ou tratamento hormonal para ter acesso ao serviço. Entretanto, além de ter 18 anos ou mais, a pessoa que deseja retificar o nome e o gênero precisa entregar uma vastidão de certidões e enfrentar uma série de burocracias:

 

Certidão de nascimento atualizada;
Certidão de casamento atualizada, se for o caso;
Comprovante de residência;
Cópia do documento de identificação;
Cópia da identificação civil nacional (ICN), se for o caso;
Cópia do passaporte brasileiro, se for o caso;
Cópia do cadastro de pessoa física (CPF) no Ministério da Fazenda;
cópia do título de eleitor;
Cópia de carteira de identidade social, se for o caso;
Certidão do distribuidor cível do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);
Certidão do distribuidor criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);
Certidão de execução criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);
certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos;
Certidão da Justiça Eleitoral do local de residência dos últimos cinco anos;           
Certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos;
Certidão da Justiça Militar, se for o caso.

 

Para dar início ao processo, é necessário apresentar todos esses documentos em qualquer cartório de registro civil, preencher um requerimento de solicitação da alteração e efetuar o pagamento de uma taxa de averbação geral e da segunda via de certidão de nascimento. Só é possível conseguir a gratuidade do serviço se for comprovada a hipossuficiência.

 

Em Sergipe, a Secretaria de Estado da Segurança Pública inaugurou, no dia 5 de agosto,  o Posto de Identificação do Centro de Referência em Direitos Humanos LGBTI+, que concentra os serviços de retificação de nome e de inclusão do nome social.

 

Quando retificou seu nome e gênero em todas as documentações, em 2019, a estudante de design gráfico Brunna Nunes Barros sentiu que aquilo seria uma garantia de que sua identidade seria legitimada. A retificação trouxe a ela a possibilidade de ter acesso a direitos básicos, como assistência em saúde, educação ou abertura de contas bancárias. Antes disso, ter que apresentar documentos com seu nome antigo era um motivo de constrangimento e desconforto enorme.

 

Entretanto, mesmo tendo passado pelo processo de retificação, a jovem teve o direito desrespeitado na Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde estuda. Desde que ingressou na instituição de ensino, em abril deste ano, Brunna recebeu diversos e-mails onde constava seu nome morto, e precisou fazer uma série de requerimentos para tentar resolver aquela situação.

 

A UFS alegou que houve erro no sistema, causado por um conflito de dados migrados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) devido a uma inscrição anterior da estudante no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no ano de 2015. Contudo, ao retificar o nome, Brunna fez questão de ter certeza de que ele seria alterado também em todos os sistemas e cadastros que possuía – inclusive do Inep.

 

O erro só foi corrigido no último mês de julho, quando, assim como Rafaela, Brunna precisou recorrer à abertura de um processo judicial para conquistar um direito que já era dela. Desde então, a estudante não voltou a receber e-mails que desrespeitam sua identidade.

 

Falsidade ideológica

 

Mesmo após a morte, os documentos continuam sendo fundamentais. Ao contrário do que alguns pensam, o laudo médico de óbito não é suficiente para que fique oficialmente registrado que aquela pessoa não está mais aqui; é necessário que familiares e responsáveis solicitem a certidão de óbito em um cartório. Caso contrário, o falecido continua vivo para o Estado, o que pode ocasionar uma série de problemas.

 

É o que orienta Juan Almeida, delegado da Polícia Federal em Sergipe. “A legislação determina que a pessoa tem 15 dias para comparecer ao cartório mais próximo para registrar a certidão de óbito, documento oficial no nosso país que registra que a pessoa morreu para todas as instituições públicas. O cartório comunica ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e também dá baixa na receita daquele CPF”, detalha o delegado.

 

Um dos problemas mais comuns decorrentes da subnotificação do óbito é o uso dos dados da pessoa falecida para a aplicação de golpes previdenciários. Segundo o delegado Juan Almeida, apesar de atualmente haver poucos casos como esse sendo investigados no estado, o número de golpes desse tipo chegou a atingir 100 casos suspeitos em 2016.

 

Ele explica que, normalmente, os próprios familiares da pessoa morta continuam recebendo o benefício indevidamente. Contudo, também há casos de perdas ou extravios dos documentos do falecido, que podem acabar parando nas mãos de terceiros. Nessas situações, o delegado orienta que é necessário prestar um boletim de ocorrência, para que o fato fique registrado e o familiar não seja responsabilizado pelo eventual uso indevido daqueles dados.

 

Atualmente, a maior parte dos golpes previdenciários em Sergipe envolve a criação de pessoas falsas. De acordo com Juan Barros, há mais de 300 benefícios sendo auditados sob a suspeita de uso de dados falsos para o recebimento do recurso. “A pessoa sequer existe. Foram originados dados falsos, forjada uma certidão de nascimento; com essa certidão de nascimento falsa, a pessoa consegue tirar um RG, e com o RG falso requer o benefício previdenciário”, detalha o delegado.

 

A Polícia Federal busca combater esse tipo de crime em parceria com a inteligência previdenciária e com os canais de denúncias de outros órgãos de segurança.

 

Segundo a presidente da Arpen/SE, Rejane Guimarães, a incidência desse tipo de golpe justifica parte da burocracia da emissão de certidões de nascimento tardias. Segundo ela, os cartórios precisam ter a certeza de que aquela pessoa realmente não possui nenhum tipo de registro, a fim de combater a prática de fraudes com a criação de pessoas falsas.

 

Fonte: F5 News